20/02/2021

AMR - Referencias 3

 Intervenção da Prof.ª Doutora Maria Alegria F. Marques

na entrega do Prémio de História Medieval “Almeida Fernandes”

em Bertiande, Lamego, no dia 28 de Novembro de 2008

 

Afirmar que a instituição concelhia é tão velha quanto o Estado português, para além de óbvio torna-se ainda redutor, pois na realidade ela é mais antiga que ele, atendendo às cartas foraleiras concedidas por Fernando Magno pela região duriense, ainda no séc. XI.

É também lugar-comum, pelo menos entre medievalistas, a afirmação de que os forais – e diremos deles, muito simplesmente, que eram cartas de instituição ou de reconhecimento dos concelho – foram extraordinários, entendemos mesmo que os mais potentes instrumentos de desenvolvimento local e regional durante os séculos medievais.

Não admira, por isso, que tal instituição tenha resistido, embora com alterações, a tão importantes movimentos políticos como o da centralização do poder, absolutismo ou liberalismo e tenha ganho raízes tão profundas na sociedade portuguesa, a ponto de ter sido uma das que mais vitalidade ganhou com a última grande mudança política ocorrida na sociedade portuguesa, o 25 de Abril de 1974.

Tudo isto justifica, pois, o interesse intelectual que a instituição concelhia concitou, sobretudo quando, no séc. XIX, no entusiasmo do liberalismo, os forais foram abolidos, por decreto de 13 de Agosto de 1832, de Mouzinho da Silveira. Se uma das razões para esse facto foi a ideia de que os forais eram “um peso intolerável” para os povos, obstáculo ao “bem e progresso da agricultura”, nem por isso o povo melhorou a sua sorte, nem a agricultura recuperou da profunda letargia e atávico arcaísmo em que se achava mergulhada, nem os governos acharam forma de revitalizar a instituição municipal. E pese, embora, os desejos e os esforços de uns quantos saudosistas, cristalizados pela pena indelével de Camilo Castelo Branco na figura de Calisto da Barbuda, o legitimista presidente de Miranda e “aristocrático anjo”, nem assim eles tiveram força para revigorar os forais “da antiga honra portuguesa”, penhor do governo de suas casas, onde eram reis e governo… (A queda de um anjo, 1865).

Mortos administrativamente, os forais ganharam nova vida, agora pelo estudo e reflexão. Basta que se apresente o nome de Alexandre Herculano (História de Portugal, 1.ª ed. 1846-1850), para se perceber como foi grande o interesse que eles suscitaram a grandes espíritos da cultura portuguesa, a ponto de lhes virem a dedicar muito da sua vida. Ainda no mesmo séc. XIX, Henrique da Gama Barros os teria muito de perto nas suas reflexões conducentes à História da administração pública em Portugal nos séculos XII a XV (1.º e 2.º vols., Lisboa, 1885, 1896). Se lhe juntarmos um outro, embora anterior, Alberto Carlos de Menezes, com um trabalho nascido em contexto e com objectivos bem diversos (Plano de reforma dos forais e direitos banais…, Lisboa, 1825), verifica-se que, desde logo, estavam desenhadas as duas grandes linhas de pensamento que haviam de informar a reflexão sobre eles, a histórica e a jurídica.

Já no séc. XX, enformados por outras correntes de pensamento, alguns outros nomes grandes do panorama intelectual português se dedicaram também ao estudo do tema: Torquato de Sousa Soares, Paulo Merêa, Marcelo Caetano, num primeiro momento, para, numa revitalização profunda dos estudos históricos, nas últimas três décadas do mesmo século, lhe terem ligado os seus nomes Humberto Baquero Moreno, José Marques, José Mattoso, Maria Helena da Cruz Coelho, José A. Duarte Nogueira. E isto para nos ficarmos apenas intra-muros, pois se poderiam ainda acrescentar uns quantos nomes mais, de autores espanhóis, franceses e até americanos.

António Matos Reis posiciona-se, pois, na tradição de ilustre intelectualidade que tomou, decididamente, por objecto de estudo e reflexão essa realidade que marcou decisivamente “a defesa das liberdades e direitos dos homens livres, de modestos ou médios recursos económicos, contra as prepotências dos grandes”, para usar das palavras do próprio autor.

O interesse de Matos Reis acerca dos forais e do movimento concelhio delineou-se desde muito cedo. Num percurso de vida que o levou a frequentar o mestrado em História da Idade Média na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, aí apresentou a dissertação intitulada Origens dos municípios portugueses, que havia de dar à estampa em 1991, na editora Livros Horizonte, com segunda edição em 2003. Já aí Matos Reis se debruçava sobre os forais outorgados desde o séc. XI até aos inícios do séc. XIII, perspectivando, então, a sua análise fazendo cruzar o olhar sobre cronologia, áreas geográficas e tipos de povoações e populações beneficiadas com documento foraleiro.

Não mais se afastaria da temática, como o mostra os seus estudos sobre a  Fundação de Viana. O foral de D. Afonso III (1994); O foral de Valença (1996); O foral de Guimarães, primeiro foral português (1996); Os forais antigos de Melgaço, terra de fronteira (1998); O primeiro foral de Barcelos (1999); O primeiro foral do Porto (2000); O foral de Monção (2002).

O resultado de todo este esforço havia de coroar-se em 7 de Dezembro de 2004, quando o autor alcançava o grau de doutor, em provas públicas de doutoramento na mesma Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Apresentava, então, a dissertação Os concelhos na primeira dinastia, à luz dos forais e de outros documentos da chancelaria régia, preparada sob orientação do Prof. Doutor Humberto Baquero Moreno e coorientação do Prof. Doutor Armando Luís de Carvalho Homem.

Foi esta obra que o autor deu à estampa em 2007, sob o título de História dos municípios [1050-1383], publicação daquela “com ligeiras alterações, e omitido o apêndice documental”, como ele adverte em nota à edição. E foi ela também que se apresentou à edição de 2008, do Prémio A. de Almeida Fernandes e saiu colocada em primeiro lugar.

Achou-se acompanhada de muitas outras, pois, sobretudo para bem dos estudos medievais em Portugal, o Prémio consolida o seu espaço, ganha visibilidade, torna-se respeitado - e apetecido - entre a intelectualidade portuguesa, académica ou não, circunstância que também nos parece muito importante e salutar.

No presente ano, apresentaram-se a concurso dezena e meia de obras, desde o simples ensaio, trabalho académico de iniciado, até ao monumento de investigação arquivística, passando pela obra de divulgação ou a edição de textos. Ao lado da vencedora, outras duas obras foram também distinguidas, com menção honrosa, categoria segunda, porém honorável, que o regulamento do Prémio permite e consagra.

Na bibliografia de Matos Reis, a História dos municípios [1050-1383] representa a reflexão maturada de anos de estudo da temática concelhia na Idade Média. Representa também, e por isso, o aprofundamento do tema, que a cronologia anexa ao título explicita, ajudando a perceber o alargamento implícito que o autor conferiu aos estudos anteriores. Diremos que a metodologia utilizada não inova relativamente à dissertação de mestrado, mas alarga-se o âmbito cronológico, o espaço considerado e o grau de análise e reflexão. Ao mesmo tempo, ela tende à clareza, no que é apoiada pelo cuidado do autor em precisar conceitos, definir enquadramentos, relevar identidades e diferenças.

Um dos aspectos que se nos revela fulcral na obra ora em destaque é a dinâmica regional, nas suas variáveis e nas suas variantes, permitindo uma percepção rápida das regiões e até das suas sub-regiões. Mas ressalta também o facto iniludível de como os forais representam um bom conhecimento do reino, no seu espaço físico e nas suas gentes, ao considerar usos e costumes, por parte do poder central: a disseminação dos vários modelos de cartas de foral pelo país é a prova de um conhecimento do espaço e das suas potencialidades, mas é também a demonstração de que a administração central conhecia bem melhor o país do que comummente é suposto. Isto é, também neste campo administrativo a governação da Idade Média foi muito mais rica, esclarecida e dinâmica do que geralmente se entende.

Colocando estes aspectos em evidência, a obra de Matos Reis convida à leitura e à reflexão, acabando por propor, implicitamente, uma nova tipologia dos concelhos medievais, agora com base exclusiva em documentos foraleiros portugueses, de características regionais, inseridos, contudo, num todo identitário, a que as linhas comuns davam coesão e sentido. Isto, sem perder de vista o caso único de muitas individualidades concelhias, o que torna a obra referência necessária para o conhecimento mais profundo do devir de muitos concelhos antigos e actuais e instrumento a ter em conta em futuros trabalhos de história local. A sua inserção temática torna-a também muito actual, o que lhe confere redobrado significado.   

Sem dúvida que o rigor e a profundidade de análise a que submeteu a documentação traduziu bem a riqueza da vivência medieval portuguesa, no que aos aspectos administrativos concelhios – no seu sentido mais lato, que inclui a relação com o poder central -, diz respeito.

Por tudo isto, a obra toma lugar ao lado daquelas que, anteriormente, se viram galardoadas com o Prémio Almeida Fernandes. De facto, o rigor e a audácia na inovação que ela evidencia e adensam o seu mérito, vão bem com o espírito e a obra do patrono do Prémio que se celebra, Armando de Almeida Fernandes. Como membro do Júri, publicamente o assumimos e por ela nos regozijamos.

 

Maria Alegria F. Marques   

Coimbra, 28 de Novembro de 2008

Publicado na revista «Estudos Regionais» n-º 3 - 2.ª série  (200), p. 477-479.