20/02/2021

AMR - Referencias 2

 Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima

Breve apresentação

por Prof. Doutor José V. Capela** 

 Nada melhor para iniciar estas breves palavras de apresentação do livro de A. Matos Reis - A Santa Casa da Misericórdia de Ponte de Lima no passado e no presente, do que socorrermo-nos das suas próprias palavras na síntese que elaborou para a edição e onde se refere ao "significado" desta obra. Escreve o autor:

«Em Agosto de 1998, completa-se meio milénio sobre a fundação da primeira Misericórdia portuguesa e, por conseguinte, sobre a fundação das Misericórdias, essa instituição tão carinhosamente recebida pelo coração dos portugueses, que a implantaram nos quatro cantos do mundo, e que fez imenso bem aos mais necessitados e desprotegidos. Nas Misericórdias inscreveram-se como irmãos e exerceram, com maior ou menor dedicação, os diversos cargos previstos no Compromisso os mais destacados membros da sociedade local do seu tempo. A História das Misericórdias é, durante mais de quatro séculos, a história da assistência em Portugal, mas é também a história da sociedade, da economia e da arte, como demonstram vários estudos elaborados a partir dos respectivos arquivos e outros que se encontram em curso.»

Pois com esta obra e por ela pretende A. Matos Reis associar-se e associar a Misericórdia de Ponte de Lima às comemorações do meio milénio das Misericórdias Portuguesas.

Muito melhor ficaria, sem dúvida, a História das Misericórdias Portuguesas, e por ela a História de Portugal se tais comemorações fossem acompanhadas de estudos idênticos para as demais Misericórdias portuguesas.

Mas um certo "temor" de celebrações e evocações comemorativas que se apoderou da História nos tempos mais recentes, muito provavelmente terá inviabilizado as comemorações evocativas com a dignidade e a dimensão que esta instituição multissecular e intrinsecamente portuguesa merece e precisa, certamente condicionando a produção de estudos à sua altura.

A data não deixou, é certo, de assistir ao aparecimento de um ou outro estudo, de uma ou outra evocação, mas não chegaram para relevar o seu papel histórico nem a importância que as Misericórdias tiveram e têm na Sociedade Portuguesa, em particular nos domínios da assistência e da solidariedade humana e social.

Mas A. Matos Reis não precisou do pretexto do Aniversário para relevar a importância desta instituição no passado e no presente. Historiador atento aos quadros mais profundos em que se desenrola a vida local e nacional, não deixou por isso de tratar esta temática nos seus estudos de História local e regional. Com efeito, já em 1979 no Almanaque de P. de Lima (ed. de 1980) em mais breve artigo apresenta o plano e as traves mestras do texto que agora se publica, mais desenvolvido e documentado.

As efemérides dos 500 anos da Misericórdia de Lisboa e da fundação das Misericórdias portuguesas foram assim utilizadas para aprofundar e desenvolver aquela investigação, dar-lhe forma de livro para ganhar mais visibilidade e divulgação, aproveitando para elaborar um estudo histórico de síntese que permita conhecer nos seus múltiplos planos e vectores, a organização, o funcionamento, a actuação da Misericórdia de P. de Lima ao longo dos seus quase 500 anos e por ela contribuir para um melhor conhecimento das Misericórdias Portuguesas.

Mas este livro é bem mais que um estudo monográfico ou temático de uma instituição fundamental do nosso ordenamento e vida social. Ele é também, e eu diria, sobremaneira, um Guia de Estudo, para a História das Misericórdias, feito por quem tem autoridade científica para o fazer e propor, tendo em vista as investigações e os trabalhos já realizados naqueles domínios considerados fundamentais para compreender, enquadrar e explicar a História e a vida das Misericórdias, a saber, o conhecimento das problemáticas da História local, mas também da História Nacional, quanto baste, nas vertentes da vida institucional, artística, cultural e religiosa, económica e social que tão profundamente se cruzam e entrelaçam com a História das Misericórdias e das outras instituições que compõem o sistema assistencial português, do passado e do presente.

Era oportuno evocar aqui as competências do Autor nestas matérias. Escuso-me a enumerá-las porque elas são bem conhecidas de todos e é vastíssima a sua bibliografia. Uma breve síntese vai, aliás, apresentada na badana deste livro. Mas pretendo nesta circunstância evocar aquelas que nos parecem particularmente importantes para uma abordagem da História das Misericórdias, independentemente do local ou período histórico em que se pretenda situar o estudo da instituição e que Matos Reis domina de um modo muito especial.

Começaria por salientar os contextos da História municipal.

Os Municípios e as Misericórdias são, sem dúvida, as duas instituições que até um tempo muito recente mais fortemente enquadravam a vida das populações locais, de um modo praticamente absoluto até aos fins da Monarquia absoluta e advento do Liberalismo nos inícios do séc. XIX. Aos primeiros, os Municípios é entregue o plano do governo político e económico dos povos; às segundas, as Misericórdias, o plano da intervenção social e assistencial. Funções que ambas as instituições exercem num plano de divisão de tarefas, mas também de complemento, muitas vezes.

Mas muitas vezes às Misericórdias caberá acorrer à correcção dos abusos praticados por esta administração local municipal, que em vez de promover o desenvolvimento e o bem estar dos povos, concorre para o seu bloqueamento e o acentuar das diferenças, da pobreza e das injustiças.

Tal não quer dizer que as Misericórdias - tal como sucede mais frequentemente com os Municípios - não se tivessem, aqui e acolá, também por vezes transformado em instituições de poder e privilégio social. O que acontece, sobretudo quando se envolvem demais e articulam com a ordem municipal.

Ora ninguém melhor que M. Reis conhece a História Municipal e ao seu estudo, sobretudo na época medieval, tem dedicado o melhor dos seus esforços e é um especialista reputado.

Mas a história das Misericórdias é também inseparável do estudo e do conhecimento da História Social e da História Religiosa. Na história da criação e animação das Misericórdias é essencial seguir a força dos ideários sociais evangélicos e cristãos assumidos e incorporados pelo Estado, pelos poderes públicos, pela Sociedade e naturalmente pela Igreja, no sentido de realizar as obras de Misericórdia. É essencial conhecer quem nas terras assume e desenvolve o projecto de dar corpo às Misericórdias, como se usa a Instituição para a defesa e a promoção de interesses pessoais, de grupo, sociais ou de desinteressada obra social de ajuda aos pobres e mais necessitados, de promoção da justiça, de ajuda aos presos, aos órfãos, às viúvas, aos peregrinos...

Mas é também necessário atentar nas formações sociais mais desprotegidas e desclassificados a quem se dirige por excelência a actuação das Misericórdias e que nelas muitas vezes largos estratos da população, conseguem algum apoio e refrigério para as suas necessidades e pobrezas, sobretudo quando os três cavaleiros do Apocalipse andam à solta, a fome, a peste e a guerra, e deixaram atrás de si um rasto de pobreza e de desolação.

Ora também neste campo Matos Reis elaborou estudos que permitem seguir, sobretudo para os finais da Idade Média, as condições religiosas e sobretudo sócio­económicas que tomam necessária a intervenção das Misericórdias e também dos corpos sociais que nos tempos modernos dão corpo e conduzem este projecto presidindo aos destinos das Misericórdias pelo estudo sobretudo dos Provedores.

Mas é com a Arte e o Urbanismo que as Misericórdias estabeleceram uma relação muito estreita. Em regra, sobretudo nos maiores centros urbanos, das vilas e cidades, os edifícios da Misericórdia (Hospitais, Igrejas) estruturam o essencial da composição urbanística das terras e a sua arquitectura e obras de arte compõem o principal da riqueza monumental e artística da terra.

Tal como em Ponte de Lima, na generalidade das vilas e cidades de Portugal os edifícios das Misericórdias ocupam e organizam as áreas mais nobres e centrais das terras e as suas pinturas, esculturas, talhas das igrejas e capelas recolhem o Principal e mais representativo do nosso património artístico.

A História das Misericórdias liga-nos depois de uma forma mais ou menos intensa a outros aspectos da vida das populações. Ela é, com efeito, um elemento fundamental da configuração da História local e da vida das populações, um quadro por excelência das sociabilidades e solidariedades sociais que a organização e o funcionamento das Misericórdias também reflecte. Mas é também um instrumento fundamental da intervenção do Estado Português que adoptou em todo o território nacional e no ultramar as Misericórdias como instituições por excelência de resposta às necessidades das populações e nelas assentou um dos principais instrumentos de coesão social e nacional, continental e ultramarina.

Pois o que se nos oferece neste livro de Matos Reis é a História da Misericórdia de Ponte de Lima mas também e por ela um capítulo da História limiana, regional e também nacional. A começar, no capítulo I, pela fixação das instituições medievais tradicionais de assistência anteriores às Misericórdias e sua reorganização no quadro do figurino da Misericórdia de Lisboa de 1498, que haveria de se transpor para o restante território nacional.

Com a iniciava de D. Leonor e o génio organizativo e reformador de D. Manuel I, acabava de se fundar uma instituição que se haveria de estender a todo o território e que haveria de se revelar fundamental ao longo da nossa História para a harmonizarão da sociedade portuguesa, onde se dirimiriam muitas das desigualdades e egoísmos privados, evidentes sobretudo nas tendências oligárquicas e nos abusos sociais e excessos das justiças de que é vitima o povo português e de que muitas instituições (entre elas as câmaras dos concelhos) vinham sendo causa e suporte.

Às tendências oligárquicas e aristocráticas em que se estavam organizando os concelhos nos finais do séc. XV e princípios do séc. XVI, que promovem sobretudo os interesses dos seus órgãos dirigentes, contraporá D. Manuel I, na continuidade da reforma que intentará para os concelhos, através da sua submissão maior ao poder régio, uma instituição onde se organize a colaboração e o diálogo social entre nobres e não nobres para promover os interesses dos mais pobres, deserdados e desclassificados.

Deste ponto de vista, as Misericórdias nascem como contraponto aos concelhos. A. Matos Reis fixará, de seguida, com o rigor do investigador e do medievalista bem treinado na crítica histórica os principais momentos da instituição: a fundação em 1530; as primeiras incorporações na Misericórdia do Hospital dos Peregrinos e do Hospital da Praça; o progressivo desenvolvimento do seu património e fixação das suas fontes de receita que faz da Misericórdia de Ponte de Lima tributária de contributos que se alargam muito para além do termo do seu concelho, numa clara expressão da relevância política e social da terra, com fortes vínculos ao território da sua comarca onde afiaria a sua liderança regional (que sempre intentará reconstruir), mas também a outras terras do território minhoto e ultramarino por onde se espalham as gentes limianas, que levam a Misericórdia consigo no coração.

Ao período filipino corresponde a consolidação da Misericórdia de Ponte de Lima,, com a reforma de 1631, afirmando-se ao longo do séc. XVII numa intensa actividade assistencial, mas também, fruto de donativos, amplia o Hospital da Porta do Souto e da Praça, constrói a Igreja. Igreja que no século XVIII se embelezará com as obras e os trabalhos de Miguel Coelho.

A História da Misericórdia volver-se-á, efectivamente, quando M. Reis trata as obras e os trabalhos deste grande mestre entalhador e ensamblador ou do Engenheiro Lescol, História da Arte e da Arquitectura, com que Ponte de Lima através da Igreja e do Hospital da sua Misericórdia se tornará um dos principais centros e repositórios da Arquitectura e Arte Portuguesa do tempo.

Nos capítulos VII e VIII, dedicados à fixação das principais etapas da Misericórdia de Ponte de Lima no séc. XIX e XX, vemo-la adaptar-se aos tempos modernos.

Em primeiro lugar na adaptação aos novos tipos de rendimentos e na tentativa, frustrada, de se constituir, por meados do séc. XIX, em Banco Agrícola, para, por efeito da significativa receita obtida com a desamortização, aproveitar a experiência de instituição credora que muitas vezes exercera com as disponibilidades monetárias de que sempre beneficiava.

Vêmo-la, no novo quadro orgânico que lhe definem os poderes públicos e políticos, debilitada na sua capacidade de influência social, diminuída no grau da autonomia política e financeira, que sempre tivera, vemo-la, por períodos, perder o seu marcado cunho de instituição social de marcada compleição laica, onde, apesar do essencial enquadramento religioso, o clero não exerce ascendente especial, e assumir, por alguns períodos, uma marcada configuração eclesiástica, que significava então perda de entrosamento e vitalidade social. Vêmo-la, inclusive, depois de 1878, sofrer de algum desinteresse pela participação social nos seus órgãos, expressa no alargamento do período de mandatos (de 1 para 2 anos) que se fixará na revisão estatutária de 1913.

No capítulo IX, Matos Reis historia os desenvolvimentos mais recentes, no pós 1974, desta instituição multissecular, na adaptação aos tempos modernos e no alargar dos seus horizontes a outras ramos de assistência e beneficência social.

Poderá não estar tudo dito nesta obra de Matos Reis sobre a Misericórdia de Ponte de Lima. E seguramente não está, porque o campo da investigação e da intervenção desta instituição é grande, e as perspectivas e as temáticas a estudar são imensas e sempre renovadas em função dos tempos e das perspectivas dos estudiosos. Mas o estudioso e o investigador Matos Reis abriu o caminho, largos caminhos, com esta obra, para o estudo das Misericórdias portuguesas.

Em primeiro na definição das grandes temáticas, dos contextos históricos e na proposta dos períodos a estudar. Vão aí fixadas as traves mestras, as problemáticas e os caminhos essenciais.

E depois pela publicação, em Apêndice, do inventário do Arquivo. Que é um excelente arquivo, um dos mais ricos arquivos da História Portuguesa, que Matos Reis nos explica e nos ensina a consultar nas suas séries mais importantes, a partir da quais se poderá fazer investigações sobre uma infinidade de temas ligados à História da instituição, e a muitas outras problemáticas e temáticas da História local, regional e nacional.

É o que ele próprio fez, exemplificando com estudos temáticos sobre os preços (trabalho pioneiro, ao publicar, em 1980, a mais longa e contínua série de preços conhecida em Portugal); sobre a lista dos provedores da Misericórdia, sobre a figura de Miguel Coelho, entre outros capítulos fundamentais de uma História económica, social e artística limiana e nacional.

Esta obra é pois, essencialmente, um guia de estudo para aprofundar a História da Misericórdia de Ponte de Lima e por ela iniciar ao estudo das outras Misericórdias do país e do Ultramar.

É por isso que estamos gratos, de um ponto de vista local e nacional, a A. Matos Reis e à Misericórdia de Ponte de Lima, que nos ofereceu esta obra, neste ano em que se comemoram os 5 séculos sobre a Fundação da Confraria da Misericórdia de Lisboa e se iniciou o caminho da criação, à imagem e semelhança da instituição lisboeta, das Misericórdias portuguesas.

 

Publicado em «Estudos Regionais» 19/20 (Dezembro 1998/99), p. 285-290

 

 Publicado em «Estudos Regionais» 19/20 (Dezembro 1998/99), p. 285-290.