20/02/2021

AMR - Referencias 1

  APRESENTAÇÃO DE O FORAL DE VALENÇA

 Prof. Doutor José Marques

 1-  Introdução

 É com muita satisfação que me encontro, mais uma vez, neste salão de actos da Câmara Municipal, para colaborar na sessão de lançamento de uma obra da autoria do Sr. Dr. António Matos Reis, consagrada ao Foral de Valença, documento fundamental e obra imprescindível para o conhecimento da história do município de Valença e das suas gentes.

Com o estudo que, a partir de agora, fica ao alcance de todos os interessados, o Sr. Dr. António Matos Reis proporcionou um precioso contributo para o conhecimento da história deste concelho, tornando acessível e compreensível ao grande público uma fonte primordial, escrita em latim, que poucos tinham possibilidade de consultar e de compreender convenientemente por falta de preparação adequada sobre o municipalismo dos primeiros séculos da nacionalidade portuguesa. Direi, mesmo, que prestou um excelente serviço à Cultura e ao Município de Valença, que, assim, pode prosseguir a acção cultural que lhe incumbe desenvolver - até porque dispõe de meios que outras entidades e instituições não têm - e colocar ao dispor de professores e alunos das escolas sediadas na área do concelho, bem como dos estudiosos do municipalismo e da história local um instrumento de trabalho, verdadeiramente insubstituível.

E não se pense que isto é pouco, embora nunca seja demais tudo quanto se fizer no sentido de valorizarmos a língua materna, a história pátria e a história local, como garantes que são da nossa identidade. Os mais de oito séculos e meio que temos como estado independente não podem ser impunemente apagados da memória do povo que soube preservar e recuperar a sua autonomia, em momentos difíceis. É por isso que não se pode assistir sem preocupação a um progressivo esvaziamento do conteúdo dos programas de História de Portugal, em favor de um conhecimento mais vasto da História da Europa.

É neste contexto que a história local e os primórdios da vida municipal passam a ter um renovado interesse e função social.

 2 - O Autor

 Embora o objectivo principal desta intervenção seja proceder à apresentação da obra O Foral de Valença, obriga a ter presente também o seu autor, apesar de ser bem conhecido para além de Viana e do Alto Minho, a que dedicou a quase totalidade da meia centena dos seus apreciados estudos, tendo direito a ser considerado benemérito da História e da Cultura do Distrito de Viana do Castelo, pelo volume e diversidade da sua obra.

O Sr. Dr. António de Matos Reis começou a publicar os seus estudos ainda antes de ter concluído a licenciatura em História, na Faculdade de Letras do Porto, tendo o ritmo aumentado após a conclusão do curso. A sua ânsia de saber e de aperfeiçoamento científico levou-o a especializar-se em Museologia e em História da Arte, em Florença, e, depois, em História Medieval, tendo, para o efeito frequentado e concluído o Mestrado em História Medieval, ministrado na Faculdade de Letras do Porto, com uma dissertação intitulada Origens dos municípios portugueses, publicado em 1991, pela editora Livros Horizonte. Passou, assim, a ser uma referência obrigatória para quantos pretendam estudar as nossas instituições municipais dos séculos XII e XIII, ocupando já um lugar de relevo no quadro da renovação dos estudos sobre o municipalismo medieval português. E não se pense que este interesse decorre apenas da necessidade de elaborar uma dissertação académica, pois vinha de longe e continuou com entusiasmo. Com efeito, bastará recordar que o seu segundo trabalho, datado de 1976 - há precisamente vinte anos - versou sobre Ponte de Lima. O Foral de D. Teresa, e que, após a publicação da referida dissertação de mestrado, consagrou outros estudos à mesma temática, concretamente: Os forais antigos do Noroeste peninsular (1991), Fundação de Viana – O Foral de D. Afonso III (1994) e, agora, O Foral de Valença.

Se das principais linhas temáticas da investigação do Dr. António Matos Reis privilegiei esta, foi com o propósito deliberado de salientar a sua preparação nestes domínios do saber e a sua experiência investigativa nesta temática, e assegurar que este estudo, saído das mãos de um verdadeiro especialista, pode ser consultado com segurança.

 Tenho consciência de que estas palavras contrastam com a modéstia e discreção do Sr. Dr. António Matos Reis, que preferiria o meu silêncio neste capítulo, mas não poderia incorrer nesse pecado de omissão pelo direito que os presentes têm de conhecer a preparação científica do autor da obra agora divulgado, a que passo a referir-me.

 3 - Renovação dos estudos sobre o municipalismo

A importância d'O Foral de Valença, cuja edição foi confiada ao Sr. Dr. António Matos Reis e a Câmara Municipal se incumbiu de publicar, ultrapassa o interesse imediato de contribuir para a difusão do conhecimento da história deste município e insere-se no tema mais vasto da renovação dos estudos sobre o municipalismo português. Há menos de vinte anos, quem pretendesse conhecer alguma coisa sobre a história do municipalismo medieval português, além do recurso, sempre obrigatório, à História de Portugal, de Alexandre Herculano - em muitos aspectos ultrapassada - e à História da administração pública em Portugal nos séculos XII-XV, de Henrique da Gama Barros, teria de recorrer aos estudos dos Professores Marcello Caetano e Torquato de Sousa Soares, válidos ainda hoje, não obstante a evolução que o segundo autor foi operando nas suas posições, ao longo dos anos.

Entretanto, o estudo de Maria Teresa Campos Rodrigues sobre A administração municipal de Lisboa no século XV, A administração de Vila do Conde, em 1466, que elaborei para servir de dissertação complementar nas provas de doutoramento, bem como os artigos sobre o assunto escritos por Humberto Baquero Moreno, depois, reunidos sob o título Os municípios portugueses nos séculos XIII-XVI (1986), sem esquecer outros estudos, acabaram por suscitar um renovado interesse pela história municipal dos finais da Idade Média e até do século XVII, de que os mestrados em História Medieval, da Faculdade de Letras do Porto, e o Centro de Formação Autárquica, em Coimbra, foram os principais dinamizadores. Disse foram, porque a opção por um curriculum exclusivamente técnico para o mencionado Centro de Formação Autárquica deixou a investigação histórica apenas à Universidade. Neste sentido, tiveram assinalada repercussão, além de numerosas jornadas sobre municipalismo e história local, promovidas por diversas Câmaras Municipais e associações culturais, as «Jornadas sobre o Município na Península Ibérica nos séculos XII-XIX», realizadas em Santo Tirso, de 22 a 24 de Fevereiro de 1985, e o «1.º Colóquio Luso-Brasileiro sobre Municipalismo e História Urbana», realizado na Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte, na Universidade Federal Fluminense-Niterói e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, de 23 de Agosto a 2 de Setembro de 1993. No próximo mês de Outubro, no II Congresso de Guimarães, porque este ano ocorre o IX Centenário da outorga do foral de Guimarães pelos Condes Portucalenses, D. Henrique e D. Teresa, haverá um conjunto de comunicações consagradas à temática dos forais e dos coutos, que constituirão um dos módulos da 3.ª secção deste congresso internacional.

Acresce que a Constituição Política Portuguesa (Porto Editora 1993), nos art.os n.os 237 a 266, reconheceu aos municípios - que representam o poder local - o seu valor político e a dignidade das suas funções sociais e restituiu-lhes, de forma ampliada, a autonomia e a capacidade cultural, a que o art.º 253 dedica especial atenção.

 4 - Contexto histórico em que foi outorgado o foral

 Surge, assim, a publicação de O Foral de Valença, em pleno contexto de renovação dos estudos sobre o municipalismo e a história local e dentro de um adequado enquadramento jurídico.

Por sua vez, o Dr. António Matos Reis, dentro dos parâmetros do rigor científico, soube imprimir-lhe também uma dimensão didáctica, que será da maior utilidade para quem tomar contacto pela primeira vez com estes assuntos, tendo começado por explicitar os conceitos básicos, que permitirão seguir sem hesitação a leitura de toda a obra, dotando-a também de um extenso vocabulário, destinado a resolver eventuais dúvidas sobre o sentido exacto de termos e expressões do texto do foral ou utilizados no estudo introdutório.

E para que o texto e o conteúdo do foral não aparecessem desenquadrados da história desta localidade, com a documentação disponível, traçou as linhas gerais da história de Valença, a partir do momento em que D. Afonso Henriques, na sequência do desastre de Badajoz, de 1169, teve de renunciar às suas ambições expansionistas sobre o sul da Galiza, e o rio Minho passou a ser, definitivamente, a fronteira norte de Portugal, continuando Tui como sede da diocese a que pertencia todo o Entre Minho e Lima.

As vicissitudes mais graves ocorreram quando por ocasião do conflito de jurisdições verificado entre os povoadores de Contrasta, inicialmente representados por Paio Corremondo, e a jurisdição régia, que, após a concessão da carta de foral por D. Afonso II, em 11 de Agosto de 1217, não podia consentir aí outros poderes, que se viram obrigados a abandonar a vila e a transferir para fora do recinto da vila a própria igreja, dedicada a S. Pedro, que passou a ter S.to Estêvão como orago.

 O clima em que se implantou a vida municipal em Valença e o contexto do reinado de D. Sancho II não eram de molde a que a gestão municipal vingasse e se impusesse, o que, aliás, é confirmado pelo facto de o Bispo de Tui e o abade de Ganfei, segundo as Inquirições de D. Afonso III, figurarem como padroeiros da nova igreja de Santa Maria da vila de Valença e diversos particulares se apoderarem abusivamente das casas pertencentes ao monarca, sem pagarem os respectivo foro anual.

Com a deposição de D. Sancho II, pelo concílio de Lião (França), em 1245, e terminada a guerra civil, ocasionada com a chegada do Conde de Bolonha, o novo monarca, D. Afonso III, dispunha das condições e autoridade suficientes para restabelecer a ordem. Em relação à povoação de Contrasta, este projecto passou pela confirmação do foral outorgado por D. Afonso II, cujas virtualidades bastavam para restabelecer a ordem e reger a vida social desta vila e do termo concelhio, de acordo com o seu clausulado, que vale a pena recordar parcialmente.

Antes, porém, observe-se que foi por ocasião da confirmação deste foral por D. Afonso ]li, em 11 de Agosto de 1262, presente na vila de Guimarães, que a antiga povoação de Contrasta passou a ter o actual nome de Valença, quer esta decisão régia tenha sido tomada por influência hispânica, quer transpirenaica.

5 - Antecedentes, apologia e estrutura

Um dos aspectos mais interessantes neste estudo e também o mais técnico, é, sem dúvida, o que se ocupa da genealogia deste foral, isto é, do paradigma ou protótipo seguido na sua redacção. O facto não tem nada de extraordinário, pois forais tipos houve-os tanto internamente, como utilizados de além fronteiras, bastando ter presente que muitas das nossas instituições medievais são, de algum modo, continuação das instituições leonesas e castelhanas.

Em matéria de forais, em relação à fronteira luso-castelhana, é sabido que os de Zamora, Salamanca e Ávila serviram de modelos a outros tantos tipos, largamente difundidos em território português. Normalmente, a opção pelo modelo escolhido cabia ao monarca outorgante ou aos oficiais da sua chancelaria, mas há notícia também de algum caso, em que o conhecimento prévio de determinado foral de além fronteira levou a pedir ao nosso primeiro rei a sua concessão. Foi o que aconteceu com os moradores de Melgaço, que, em 1183, solicitaram a D. Afonso Henriques o foro de Ribadávia - «per illum forum quod a me quesistis scilicet de burgo de Ripa Avie quod vidistis esse bonum».

Sem entrarmos em pormenores desnecessários neste momento, quanto ao foral de Valença, sabe-se que depende do de Salamanca, através do foral da Guarda, e que dele derivaram os de Monção (1261-3-12) e de uma versão anterior deste o segundo foral de Melgaço (1259-4-29), o de Pena da Rainha, Caminha, Vila Nova de Cerveira, Prado (Vila Verde) e, a partir deste, o da Póvoa de Lanhoso (1292-9-25). Note-se, porém, que esta rede de dependências, se constituiu, em muitos casos, mediante versões intermédios, geralmente hoje desaparecidas, constituindo o caso de Viana uma excepção, pois, além da versão definitiva de 1262, existe outra de 1258.

Entre a área de difusão dos forais, directa ou indirectamente, dependentes do de Salamanca, mais concretamente as zonas da Beira Alta e a ribeirinha que se estende de Viana a Melgaço, há em comum o facto de se tratar de duas áreas de fronteira.

Nos concelhos constituídos com base nestes forais a autoridade máxima é constituída pelo juiz, em contraposição com os forais do chamado tipo Ávila, vigentes em zonas mais expostas às incursões árabes, nos quais deparamos com o pretor, de nomeação régia, o que permite afirmar que estes últimos possuem uma estrutura confiada a uma chefia militar, enquanto os primeiros, isto é, os do tipo Salamanca dispõem de uma chefia civil, personificada na figura do juiz.

 6 - Alguns aspectos do foral

 Com as observações precedentes não perdemos de vista que um foral, no sentido jurídico, que lhe atribuímos, é sempre um documento constitutivo de um concelho ou município, diremos mesmo, que é a sua lei fundamental, detentora das normas básicas do enquadramento jurídico das relações entre os munícipes e até com os munícipes de outros concelhos, aí se encontrando especificados os seus direitos, obrigações e privilégios.

As cartas de foral, constituindo concelhos ou comunidades municipais, integram-se, com as cartas de coutos e as honras, no que poderemos designar «política» de ocupação do solo, pelo que, normalmente lhe está subjacente a preocupação de atrair povoadores, patente em certas cláusulas e privilégios foralengos, que, noutras condições, seriam inadmissíveis e inexplicáveis, como acontece nos casos de aceitação de homicidas, rousadores e devedores ou mesmo colonos livres, que, ao entrarem em certos concelhos com a intenção de aí residirem definitivamente, alcançavam a plenitude da liberdade com os respectivos direitos cívicos e a remissão das culpas por que eram perseguidos.

 Traçado o contexto histórico em que D. Afonso II concedeu carta de foral a Contrasta e seu filho, D. Afonso III, o confirmou a esta mesma localidade, mudando-lhe, no entanto, o nome para Valença, tal como, em 12 de Abril de 1308, D. Dinis viria a fazer com a localidade transmontana de Pinhel, cujo nome mudou para Vilar de Pombares, ao confirmar aos seus povoadores o foral que o seu procurador e alcaide de Bragança lhes havia outorgado, em 22 de Setembro de 1303.

Verifica-se, assim, que, com uma diferença de quarenta e cinco anos, o mesmo foral foi outorgado e confirmado aos moradores da mesma localidade, que na segunda destas datas recebeu o nome de Valença.

Trata-se de um foral longo, que pretende estabelecer as normas pelas quais se deveriam resolver os diferentes problemas de natureza jurídica, social e económica mais frequentes nas comunidades concelhias que se regiam por estas cartas foralengas, vulgarmente designadas «do tipo Salamanca». Estamos, por isso, em presença de fontes jurídicas de direito particular, pois ainda não se tinha procedido à introdução do chamado direito comum, destinado a estabelecer a igualdade de todos os cidadãos perante as leis do Reino, processo que haveria de implicar a superação de inúmeros obstáculos.

Apesar de nesta obra o Sr. Dr. António Matos Reis apresentar o texto latino do foral, precedido da menção da sua abundante tradição documental, isto é das versões do original e de outras formas de transmissão deste acto constitutivo do concelho de Contrasta-Valença, quer se trate de públicas-formas, cópias autênticas, cópias simples, etc., facilitou a compreensão do seu conteúdo, ao proporcionar aos leitores a tradução portuguesa.

Mesmo assim, vale a pena chamar a atenção, neste momento, para algumas das suas cláusulas normativas da vida social valenciana. É certo que muitas dessas disposições têm uma função preventiva, mas não há dúvida de que, além de pretenderem prevenir, se fosse o caso, respondiam adequadamente a situações concretas, mais frequentes do que se poder pensar, na vida das populações portuguesas da Idade Média.

Já se afirmou, mais acima, mas importa recordá-lo, que os privilégios e regalias patentes nos forais visavam estimular o povoamento, atraindo o maior número possível de pessoas, ideia claramente expressa, no foral de Contrasta-Valença, no que, em Diplomática, se designa pelo termo inscrição ou menção dos seus destinatários: «vobis populatoribus de Contrasta tam presentibus quam futuris».

Valença era uma povoação e localidade de fronteira e, por isso, as preocupações defensivas não podiam deixar de estar presentes nesta carta fundamental da sua organização social e militar. É certo que o clero e os peões, isto é, aqueles vizinhos, cujos bens não lhes permitiam ter cavalo e armas com que servissem na guerra ou noutras expedições, impedindo-os de integrarem a cavalaria vilã, estrato mais elevado da hierarquia social dentro de cada concelho, estavam isentos de participar no fossado, actividade regular anual, em que os cavaleiros vilãos de Contrasta-Valença só participavam na companhia do terratenente, seu senhor. Mas a participação nesta actividade militar não podia distrair a população da sua própria defesa. Era por isso que de acordo com as disposições do foral, apenas um terço dos cavaleiros vilãos aptos para a milícia era obrigado a ir ao fossado, enquanto os outros dois terços teriam a solicitude permanente da defesa de Contrasta-Valença e do seu termo, à semelhança do que estava explícito no foral de Vila Flor, datado também, de 1217: - «Non faciatís fosatum nec detis fosadeyra quia estis in fronteira, ergo si venerint mauri aut mali christiani ad terram scorrelos ad posse et tornent ipsa die ad suas casas», havendo afirmações idênticas, por exemplo, no foral de Junqueira de Vilariça, igualmente na região transmontana.

Na constituição deste concelho aflora uma vincada autonomia judicial, determinando os monarcas outorgante e confirmante do foral que nos pleitos e infracções que implicassem sanções monetárias, vulgarmente designadas por calumnias, a resolução coubesse ao juiz concelhio, sem possibilidade de intervenção do meirinho régio.

No plano judicial, havia três delitos fortemente penalizados, de acordo com os critérios da época: o homicídio, o rapto e a violência feita a qualquer mulher, estando a pena fixada em trezentos soldos, para qualquer destes crimes.

Em relação ao rapto das jovens, acrescia que o raptor era equiparado ao homicida.

Por sua vez, o desejo de manutenção da ordem pública e de que as populações vivessem em harmonia levou o monarca a estabelecer a aplicação de uma penalidade de sessenta soldos a quem batesse em algum vizinho, no mercado, na igreja ou na assembleia municipal, sendo a sétima parte desta quantia para o terratenente, representante do poder real.

Um dos grandes privilégios concedidos aos povoadores de Valença, que, após a outorga do foral, deveremos tratar, de preferência, por munícipes, era o de dependerem exclusivamente do Rei, não podendo cair sob a alçada de nenhum senhor leigo ou eclesiástico, que não poderiam ter aí casa própria nem permanecer na vila, de cada vez, mais do que os três dias previstos no foral, a fim de não onerarem os vizinhos do concelho obrigados a dar aposentadoria. Os clérigos, os cavaleiros vilãos e as viúvas estavam isentos de dar aposentadoria, que recaía, em exclusivo, sobre os peões, que, em qualquer caso, só eram obrigados a cumprir esse pesado e devastador encargo, quando devidamente requeridos pelo juiz para tal efeito.

Um aspecto mencionado, com frequência, em forais deste tipo, e que merece ser posto em relevo é o da inviolabilidade do domicílio. Segundo este privilégio, quem entrasse violentamente, com lança e escudo, «porta a dentro» da casa de algum vizinho, ficava sujeito ao pagamento de trezentos soldos, pena igual à infligida por homicídio, rapto ou rouso. Felizmente, o princípio da inviolabilidade do domicílio, que há mais de meio século já Luís de Valdeavellano pôs em evidência, segundo alguns dos nossos forais antigos, está consagrado na nossa legislação, e ninguém pode invadir a casa de outrem e violar a sua privacidade doméstica, sem o devido mandato judicial.

Os munícipes de Contrasta-Valença beneficiavam ainda da isenção do pagamento de portagem em todo o Reino, e ninguém os poderia obrigar a pagar montádigo pelos seus gados, do mesmo modo que não eram obrigados a pagar as penhoras do senhor ou do meirinho, e nem sequer poderiam ser penhorados por qualquer vizinho. Se, porém, algum deles tivesse aceitado ficar por fiador, se, decorridos seis meses, não fosse chamado a pagar a dívida, ficaria desonerado, e, à sua morte, a esposa e os filhos ficavam absolutamente livres de quaisquer encargos decorrentes de tal fiança.

Apesar das liberdades e garantia asseguradas por este foral aos valencianos, sem esquecermos que, em juízo, o depoimento do cavaleiro vilão deste concelho era equivalente ao do infanção de fora parte, tal como acontecia com o peão em relação ao cavaleiro vilão de outro concelho, estava-se ainda muito longe de atingir a igualdade de direitos e obrigações entre homem e mulher, à escala municipal. Um bom exemplo desta disparidade encontra-se nas cláusulas relativas às eventuais infracções praticadas por cada um dos cônjuges contra o casamento de bênçãos, que o mesmo é dizer, casamento religioso ou canónico. De facto, se o marido abandonasse a esposa, pagaria apenas um dinheiro, isto é, dez soldos, mas se a iniciativa da separação partisse da esposa, esta teria de pagar trezentos soldos, pena igual à prevista para o caso de homicídio, sendo metade deste quantitativo para o senhor da terra e a outra parte para o marido.

Como facilmente verificará quem analisar as cláusulas deste foral, bem como as de outros da mesma família salamantina, é notória em todos eles a falta de estruturação, impondo-se concluir que, em grande parte, foram organizados na base de situações casuísticas, cujos nefastos efeitos se pretendia evitar, convindo, no entanto, não incluir nesta afirmação quanto diz respeito aos privilégios e garantias positivamente outorgados aos vizinhos de Contrasta-Valença. E nem admira que assim tenha acontecido, pois a era das modificações sistemáticas ainda estava longe.

 7 - Conclusão

 Urge terminar esta breve apresentação de uma obra que, não sendo muito extensa, além de ser imprescindível para uma história científica do concelho de Valença, representa também mais um importante contributo para a história do municipalismo português, que viveu o seu período áureo nos dois primeiros séculos da nossa nacionalidade, até que D. Afonso IV, com os regimentos dos corregedores, de 1332 e 1339, e pouco depois, com a instituição dos juizes de fora, iniciou o cerceamento das genuínas liberdades municipais.

Mas não se pense que estas medidas constituíram um mal irreparável. Os tempos eram outros. A influência do Direito Romano que as universidades europeias e a Universidade Portuguesa, sediada alternativamente em Lisboa e em Coimbra, ensinavam e difundiam havia de frutificar no sentido da centralização do poder, que, entre nós, começa a despontar, de forma vigorosa, já nas leis de 1211.

Por outro lado, o Reino, além dos concelhos, que se iam multiplicando à medida que o povoamento aumentava e a Reconquista abria caminho para sul, era um autêntico mosaico de coutos, honras, senhorios de Ordens Religiosas e Militares e de concelhos senhoriais, que dificultavam, em extremo, a acção régia e a possibilidade de igualdade de todos perante a lei, só viável mediante o triunfo do direito comum sobre o direito particular.

 *   *   *

As últimas palavras são para, felicitar, de novo, o Sr. Dr. António Matos Reis pelo excelente trabalho realizado e, na pessoa do Sr. Presidente da Câmara, Major Alberto Magno Pereira de Castro, louvar a Câmara Municipal de Valença por ter, criteriosamente, realizado este investimento, de garantido êxito cultural.

 

Valença, 16 de Agosto de 1996.

Publicado em «Estudos Regionais» 17 (Dezembro 199